terça-feira, 18 de janeiro de 2011

PARA EXERCER A CIDADANIA...


Minha primeira vivência social, assumindo minha identidade masculina, se deu em São Paulo, na cidade de São Sebastião, litoral norte do estado. São Paulo é o primeiro estado brasileiro a instalar na capital um ambulatório voltado para travestis e transexuais, respeitando o direito à integridade e respeito à identidade social desta população. Em São Paulo também estão organizados diversos grupos de ação em favor dos transexuais e travestis masculinos e femininas, que carregam uma bandeira paralela à luta dos homossexuais, caminhando juntos porém com interesses distintos, já que os itens de defesa dos transexuais são especialmente voltados às questões de saúde pública e privada e a políticas em defesa do nome e da identidade social de um cidadão transexual. Justamente devido essa visibilidade e à ação organizada desses grupos em conjunto com a prefeitura e o Governo do Estado, mesmo numa cidade pequena, não tive dificuldades em assumir cargos dentro do mercado de trabalho, essas ações refletem numa população mais esclarecida.

Voltando a Recife encontrei uma realidade ainda em outro extremo, onde mesmo dentro do próprio movimento social voltado às causas LGBT encontrei bloqueios, falta de esclarecimento e fracas propostas em favor dos transexuais. Para encarar o mercado de trabalho a dificuldade foi em dobro, mesmo tendo um currículo preparado, sendo bilíngüe e com aptidão em outros idiomas, estou desempregado a vários meses. Ao longo deste período participei de várias seleções em diversas alternativas no mercado de trabalho. Passei em todas, me mostrando apto em todas as fases eliminatórias. Porém, ao revelar que sou transexual e que ainda não tenho a documentação retificada, fui descartado, colocado em bancos de espera, quando eu mesmo tinha conhecimento de que a vaga era para preenchimento imediato, outras tantas e tantas vezes não recebi nem mesmo retorno das empresas. E tudo isso sabendo que eu tinha demonstrado e confirmado mais preparo do que outras pessoas selecionadas.

Refletindo friamente à respeito, não culpo as empresas em si, a falta de informação gera medo e apreensão. Nas seleções de emprego o empregador quer para incorporar em seu quadro de funcionários pessoas que além de capacitadas não tragam problemas futuros, especialmente com a justiça. Temem que eu precise me ausentar em conseqüência de mais uma cirurgia, ou mesmo a acusação de falsidade ideológica por me tratarem, inclusive em crachás e afins pelo meu nome social. Tudo isso pela invisibilidade com que é tratado o tema no ambiente público, educacional, gerando uma ausência plena de políticas públicas e legislação vigente em favor da população transexual, além da forma equivocada como é tratado e confundido com a homossexualidade. Tudo isso reflete no desencorajamento desta população para enfrentar um curso superior ou técnico, no forte receio de serem ridicularizados e o pavor de não serem tratados devidamente de acordo com a identidade e nome social, muitas vezes ocorrendo o abandono da educação já no ensino médio ou mesmo no fundamental, afinal, não é pequeno o número de travestis e transexuais analfabetos e analfabetas, já em decorrência desta falta de informação no ambiente educacional. Além do abandono da escola, é comum o abandono da família. Agora sem estrutura familiar e sem base educacional essa população, especialmente as mulheres travestis e transexuais se reúne em guetos e criam o próprio mercado de prostituição, tráfico e comércio sexual escravo para o exterior, especialmente para a Europa. È uma bola de neve, as mais veteranas “adotam” as mais novas, criando um vínculo fictício de família com a intenção real de inseri-las neste ciclo. A realidade se mostra mais cruel quando é comum o uso de drogas para camuflar a lucidez, e o trafico de drogas se mostra mais uma alternativa além da prostiuição.

E é talvez por fraqueza mas não por falta de caráter que travestis e transexuais entrar nesta roleta russa. Fraqueza por ser de fato uma classe fraca socialmente, onde poucas atenções são voltadas à esta grave problemática social. Travestis e transexuais que não se entregaram à essas alternativas são vistos e vistas como uma rara exceção.

E ainda assim precisam carregar a estigma de serem confundidas com as demais, simplesmente por serem como são.

Quando se trata da transexualidade masculina, encontramos uma outra problemática:

Felizmente, não existe este mercado para nós, homens transexuais, voltado para prostituição e toda roleta russa já mencionada, porém quando se trata das limitações para encarar um curso ou conseguir um emprego, temos as mesmas. A não ser que façamos o possível para esconder nossa realidade enquanto transexuais, não conseguimos levar uma vida dentro da normalidade e isso dificulta que exerçamos dignamente nossa cidadania, já que temos os mesmos deveres e obrigações sociais, precisamos pagar impostos, e todas as contas sem distinção. Mas poucos de nós conseguem um emprego antes de retificarem seu documentos, e depois desta rara conquista preferem apagar de vez o passado, porém, apagar o passado resulta em mais invisibilidade, em menos informação, e enquanto isso pessoas competentes como eu estão desempregadas ou se vêem obrigados a exercer funções muito abaixo de suas capacidades para simplesmente,sobreviver.